Seguindo a ideia de convidar pessoas para escrever sobre ciência no blog, Túlio Ferneda aceitou discutir um pouco sobre o próprio conceito de "ciência". Formado em Física, atualmente é aluno de doutorado em educação pela Universidade Federal de São Carlos. Sua pesquisa é sobre estudos culturais.
Pois é, a ciência não é uma coisa só, e não existe
uma única visão sobre o que ela é ou pode vir a ser. “O que é ciência?” ou “O
que é científico?” são perguntas de caráter filosófico. Isso significa um
debate constante, uma diversidade de pontos de vista. É difícil estabelecer
critérios objetivos e universais para definir a ciência. Talvez nem faça
sentido buscarmos essa definição, porque a ciência é uma atividade humana e
plural, como não poderia deixar de ser. O que podemos fazer é buscar conhecer
vários pontos de vista, e compor a cada dia um quadro de ideias a respeito do
assunto.
Para começar, é comum escutarmos
opiniões que estabelecem uma associação direta entre a palavra “ciência” e
algumas áreas do conhecimento como física, química, biologia – as ciências da
natureza, de modo geral. Isso pode acontecer de forma implícita, por omissão
das demais áreas, ou de forma explícita: “humanidades não é ciência”. Essa
exclusão das humanidades revela, por si só, uma visão muito específica e
limitada a respeito da ciência. Outro ponto de vista limitado é aquele que
vincula a ciência às atividades desenvolvidas nas universidades e centros de
pesquisa, exclusivamente, como se nenhuma ciência ou nada de científico pudesse
ser realizado fora desses espaços. Vale a pena pensarmos sobre isso.
A ciência tende a ser considerada, com frequencia,
uma atividade baseada em alguns valores e procedimentos fundamentais:
objetividade, falseabilidade, racionalidade, neutralidade etc. Mas todas essas
premissas podem ser questionadas.
A objetividade, por exemplo, pressupõe um
afastamento entre o sujeito e o objeto de estudo, ou seja, uma não
interferência dos conhecimentos prévios, teorias, crenças, valores e
posicionamentos do pesquisador na leitura que este faz do fenômeno estudado.
Pelo menos duas ressalvas podem ser feitas aqui.
Por um lado, em algumas áreas de pesquisa, como
educação ou ciências políticas, por exemplo, essas premissas são consideradas
insuficientes para dar conta de sustentar muitas práticas de pesquisa. Imagine
que você quer estudar a relação professor-aluno, em uma sala de aula, e avaliar
em que medida esse fator influencia a motivação dos alunos para aprender uma
determinada matéria. Nesse caso, o ponto de vista do professor e dos alunos
compõem justamente as informações mais importantes dessa investigação. O
sujeito (com suas opiniões, valores etc) é componente fundamental do objeto de
pesquisa. E o sujeito pesquisador, que observa e analisa o fenômeno, também contribui
para a construção da pesquisa com base em seus valores próprios.
Sabe por quê? Por mais distante e objetivo que ele
consiga ser durante o processo de análise, a própria delimitação do tema de
pesquisa já revela uma escolha de valores por parte do pesquisador. Alguém que
estuda a relação professor-aluno é alguém que considera essa relação
interpessoal como parte fundamental do processo de ensino-aprendizagem, o que
já significa, a priori, um rompimento com as visões mais tradicionais de
ensino, por exemplo, para as quais essa relação nunca esteve em pauta, por ser
considerada uma transmissão e não vislumbrar outras possibilidades. Ou seja,
quando esse pesquisador decidiu estudar esse tema, ele já fez uma escolha
teórica prévia, dentro de certos limites, e projeta seus valores em sua
pesquisa. É impossível separar completamente sujeito e objeto.
Algo semelhante acontece nas ciências exatas, na
física, por exemplo. Nesse caso o objeto de estudo não engloba subjetividades,
mas o pesquisador sim. Quando analisa um fenômeno numa perspectiva quântica, ou
relativística, ou mesmo clássica, esse pesquisador já lança um certo olhar,
teoricamente condicionado, para esse fenômeno, e tende a interpretá-lo com base
em um sistema conceitual prévio. Isso é neutralidade teórica? Quando abrimos um
livro de física, é comum lermos frases do tipo “os corpos caem em direção ao
centro da Terra porque a força gravitacional é atrativa e radial”, como se a
força gravitacional existisse. Essa forte correspondência feita dos modelos da
física com a realidade, é em si uma projeção dos valores dos cientistas sobre o
conhecimento e sobre a realidade. Alguém sempre diz, “Mas nós podemos medir
essa força”, e eu pergunto, o que é medido é força ou movimento? Algo para se
pensar.
Isso não
significa que a objetividade não aconteça em algum grau. Talvez em graus
variados, de acordo com as condições da pesquisa, mas ela nunca é total. E não
poderia mesmo, afinal, não existe pesquisa sem sujeito.
A própria questão da razão pode ser cutucada. Não
podemos negar que a razão é um dos grandes pilares da ciência. A ciência se
propõe a isso, a olhar para o mundo de uma forma racional, não é? Ou seja, de
uma forma não mitológica, para oferecer às pessoas uma alternativa aos dogmas
das religiões, das crenças, dos mitos, das ideologias, não é isso? Será que é
isso mesmo? Essa é uma grande promessa da ciência: conduzir o ser humano à
verdade por um caminho relativamente seguro. Será que essa promessa tem sido
cumprida? Ou será que a ciência se constitui com base em alguns mitos também?
Em linhas gerais, a ciência é socialmente neutra?
Sua única intenção é a conquista de um conhecimento puro e cada vez mais fiel à
realidade? Seu único efeito é essa conquista? Ou ela influencia em aspectos da
vida que são externos à esfera do conhecimento, como a organização social, o
modelo de progresso e desenvolvimento,
nossa relação com a natureza e com o outro? Que papel a ciência tem no
desenho do nosso futuro? Que papel cabe a ela nesse desenho?
Tenho mais perguntas do que respostas.
De todo modo, podemos formular diferentes tipos de
perguntas quando pensamos sobre ciência. Algumas perguntas dizem respeito mais
ao funcionamento das pesquisas científicas, ou à natureza do conhecimento e sua
construção, como por exemplo, “O que faz de uma afirmação uma proposição
científica?” ou “O que garante a validade de uma teoria?”, “O que garante a
validade de um experimento?”, “O que significa fazer uma observação
científica?”, “O que significa seguir um método científico?” etc. Outras
perguntas são mais voltadas para a relação da ciência com a sociedade, como “O
que a ciência faz?”, “Qual é a função da ciência?”, “Qual é a relação entre
ciência e progresso?”, “Qual é a relação entre ciência e poder?”, “Qual é a
relação entre ciência e desigualdade social?” etc. Aliás, quando escolhemos
quais perguntas fazer, quais fazem sentido ou não, isso também já revela nossa
visão pessoal sobre a ciência.
Algo interessante de se pensar é se faz sentido
separar todas essas perguntas, ou se elas estão relacionadas entre si. Será que
o nosso conceito de “ciência” não tem nada a ver com aquilo que acreditamos ser
a função da ciência? Será que a nossa visão de “método científico” não tem nada
a ver com a forma como pensamos a relação ciência-sociedade? Eu acho que tem
tudo a ver.
Uma leitura que traz uma discussão interessante, que
tem feito muito sentido para mim, é A
Construção das Ciências, de Gérard Fourez. Ao invés de cair num debate sem
fim na tentativa de buscar uma definição para a ciência, o autor vai numa outra
direção: ele discute as posturas ou atitudes que as pessoas têm perante o
conhecimento, seja este científico, filosófico, ético, religioso etc. Fourez se
alinha a uma visão que considera a ciência, assim como as demais formas de
conhecimento, como uma construção humana, historicamente e culturalmente
condicionada, portanto sujeita às transformações da sociedade. Em outras
palavras, se a sociedade muda, se nosso modo de viver muda, a forma de fazer
ciência também pode mudar. Isso nos ajuda a relativizar um pouco o conhecimento
científico, que perde seu caráter de “verdadeiro” ou “absoluto”, mas não perde
seu valor por conta disso.
Uma tendência atual é pensar a ciência na
perspectiva dos estudos culturais, e isso significa, entre outras coisas, romper
com a hierarquização do conhecimento, ou seja, evitar rotular uma forma de
conhecimento como essencialmente superior às demais. Vivemos em um mundo ainda
repleto de intolerância às diferenças. Me preocupa muito ver cientistas
formados dizendo que aquilo que não se enquadra em seus padrões não tem valor
enquanto conhecimento. Me preocupa ver cientistas dizendo, categoricamente, que
“acupuntura e homeopatia” não é medicina válida, ou dizendo que “as religiões
são uma doença”. Esse é o tipo de intolerância que podemos dispensar.
Reposicionar a ciência em um sistema conceitual mais democrático, que a trate
como uma das diversas manifestações culturais humanas, válida dentro dos
limites a que se propõe, parece ser uma postura interessante, uma atitude mais
histórica e menos idealista com relação à ciência.
Quero finalizar com uma citação de Descartes: “É bom
saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de julgar os nossos mais
corretamente, e não pensar que tudo o que se opõe aos nossos modos é ridículo e
contrário à razão, como costumam fazer os que nada viram” (DESCARTES, 2013, p.
37). Perante a diversidade do mundo, o que nós vimos ou de fato conhecemos?
Muito pouco. Não importa o quanto estudamos ou viajamos, somos eternos
ingênuos, no sentido de que há muito mais ideias e vidas e culturas no mundo do
que somos capazes de conhecer.
Referências:
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução: Paulo
Neves. L&PM Clássicos. Porto Alegre, 2013.
FOUREZ, Gerard. A construção das ciências:
Introdução à filosofia e à ética das ciências. Editora UNESP. São Paulo
1995.
Sugestões:
BOURDIEU,
Pierre. PASSERON, Jean-Claude. A
reprodução.
Francisco Alves. Rio de Janeiro, 1975.
CEVASCO, Maria
Elisa. Dez lições sobre estudos
culturais. Boitempo. São Paulo, 2012.
CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? Editora
Brasiliense. São Paulo, 1993.
KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das
revoluções científicas. Editora Perspectiva, São Paulo, 1998.
MORIN,
Edgar. Ciência com consciência.
Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2005.
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